quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

A relação sociedade-natureza no ensino do jornalismo

 


Míriam Santini de Abreu - jornalista

Apresentei resumo expandido de Comunicação Científica no Encontro Regional Sul e no Encontro Regional Centro-Oeste de Ensino de Jornalismo (Erejor Sul e Erejor Centro-Oeste) sobre a relação sociedade-natureza no ensino do jornalismo.

Seguem considerações sobre a realidade em Santa Catarina que podem servir de reflexão para o ensino do jornalismo em outros estados.

A RELAÇÃO SOCIEDADE-NATUREZA NO ENSINO DO JORNALISMO 

A chamada crise climática visibiliza de modo contundente a relação entre sociedade e natureza sob a atual fase do modo de produção capitalista. Fenômenos como enchentes e secas cada vez mais frequentes e intensos são expressões desta realidade e recebem cobertura jornalística episódica em Santa Catarina. A preocupação desta Comunicação Científica é apresentar caminhos para o ensino do jornalismo no estado abrir-se a esta realidade e à complexa formação socioespacial catarinense e a partir dela incorporar (adicionar algo novo a determinado ser ou corpo, conjunto ou realidade) o cotidiano e o espaço (como produto social) na totalidade do curso e na formação integral do estudante.

Poderia se advogar a necessidade de os cursos oferecerem disciplinas como jornalismo ambiental, especialização jornalística consolidada no Brasil no último quarto do século XX, mas não basta. Iniciativas nesta direção em Santa Catarina revelam-se insuficientes para enriquecer, com os estudantes, a experiência do corpo no espaço e no cotidiano. São iniciativas que exibem poucos resultados no ensino, na pesquisa e na extensão e morrem pouco a pouco no curso dos semestres. Há que investigar até que ponto esta constatação se reflete na cobertura jornalística, por sua vez mediada pelos interesses empresariais, visto que da década de 1980 para cá foram diminuindo as iniciativas de cadernos, editorias ou mesmo coberturas mais abrangentes com pauta ambiental no estado.

Para apresentar dados, realizou-se investigação específica sobre as pesquisas no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e nos repositórios institucionais das universidades públicas (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS e Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC) e do Sistema Acafe (Associação Catarinense das Fundações Educacionais), a partir do termo “jornalismo ambiental”. Cabe citar que nem todos os repositórios das universidades comunitárias (Sistema Acafe) são abertos para não-membros da comunidade acadêmica e nem apresentam a totalidade dos trabalhos produzidos por aquelas universidades. Para  ampliar o escopo de materiais, recorreu-se às referências bibliográficas dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs), dissertações, artigos e livros encontrados sobre o tema.  A partir daí, organizou-se repositório de pesquisas na perspectiva do Estado da Arte e o Estado do Conhecimento, para “rever caminhos percorridos, portanto possíveis de serem mais uma vez visitados por novas pesquisas, de modo a favorecer a sistematização, a organização e o acesso às produções científicas e à democratização do conhecimento (SILVA et al, 2020, p.2). As pesquisas encontradas estão disponíveis em https://jornalismoambientalsc.blogspot.com/p/pesquisas_99.html

O levantamento no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, realizado em agosto de 2024, com o termo “Jornalismo ambiental”, apresentou 194 resultados. Refinados por Instituição, especificamente a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade Regional de Blumenau (FURB) – as duas únicas de Santa Catarina relacionadas –, o resultado baixou para 10. A leitura do material, porém, mostrou que apenas 4 tinham relação com o termo pesquisado, todas elas dissertações de mestrado.

A ampliação da busca, conforme os critérios já indicados, revelou a existência de 7 Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs), 6 dissertações (inclusive as 4 já mencionadas), 11 artigos e 2 livros. A mais antiga pesquisa localizada foi dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFSC, em 2004, analisando o discurso jornalístico sobre o desenvolvimento sustentável em dois veículos impressos, a qual foi publicada em livro em 2006. A mais recente, de 2024, foi outra dissertação de mestrado com ênfase nos direitos humanos e da natureza sob a perspectiva de dois grupos de mídia de Santa Catarina, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC.

Na análise dos materiais, percebe-se que a revisão bibliográfica das pesquisas traz o conhecimento do jornalismo em geral e do jornalismo ambiental em particular, mas as pesquisas, independentemente da orientação teórico-metodológica e dos objetos empíricos, em geral não dialogam com trabalhos anteriores, ainda que poucos, produzidos no estado. A mais recente pesquisa encontrada, da jornalista Camila Collato, dialoga com trabalhos anteriores e conclui o seguinte em relação à cobertura dos jornais A Notícia (AN), Diário Catarinense (DC) e Jornal de Santa Catarina (JSC), no período de 2014 a 2018: a) a cobertura privilegia uma constituição antropocêntrica de sentidos, apoiando-se em uma base científica moderna em relação ao meio ambiente, sendo este abordado majoritariamente por meio do dualismo humano x Natureza; b) é fragmentária, ao apresentar uma baixa interlocução entre áreas de conhecimento e saberes e; c) por vezes, é fatalista, ao furtar-se do papel de fomentador de um debate público crítico sobre responsabilidades e possíveis soluções diante dos problemas ambientais enfrentados pela população.

É uma pesquisa importante por apontar as limitações da cobertura jornalística sobre a relação sociedade-natureza em Santa Catarina. Destaca-se que, nos anos de 1978 e 1979, havia duas páginas inteiras dedicadas ao meio ambiente no Jornal de Santa Catarina, publicadas no final de semana com edição do jornalista blumenauense Moacir Loth em parceria com a Associação Catarinense de Preservação da Natureza (Acaprena), fundada em 1973. Provavelmente, trata-se de uma das primeiras iniciativas no país de uma editoria dedicada exclusivamente ao meio ambiente. Segundo Loth (2023), essa editoria alçou, involuntariamente, o Jornal de Santa Catarina na vanguarda do que seria mais tarde conhecido como jornalismo ambiental.

Atualmente, no estado, o site do jornal O Blumenauense tem uma aba específica denominada Meio Ambiente dentro do link Geral. A primeira notícia é datada de 11 de outubro de 2013. São, portanto, 11 anos de cobertura. A Folha Metropolitana, de Joinville, também exibe, no menu do site, o link Meio Ambiente. A primeira notícia com a cartola MEIO AMBIENTE é datada de 28 de julho de 2022. São iniciativas que merecem pesquisas específicas sobre conteúdos e discursos, sendo uma delas a de Vieira (2021), que, em Trabalho de Conclusão de Curso, analisa as práticas de jornalismo ambiental nos portais de notícia de Blumenau e região.

A pouca quantidade de pesquisas e veículos encontrados é incompatível com a realidade socioespacial diversa de Santa Catarina e a necessidade de um jornalismo que a interprete. O geógrafo Armen Mamigonian (2003) afirma que, no decorrer do processo histórico, delinearam-se em Santa Catarina três regiões industriais importantes identificadas como a região alemã, o Oeste agroindustrial e a região carbonífero-cerâmica do Sul. Cada uma dessas regiões lida com impactos ambientais comuns, como o desmatamento e a poluição do solo e da água, mas singulares na forma como se expressam no cotidiano da população. Porém, o jornalismo catarinense não tem abordado tão complexa realidade e parte expressiva das pesquisas científicas localizadas também não leva em conta essas particularidades socioespaciais.

O caminho, para além da oferta de disciplinas eventuais, é levar o estudante a experenciar o cotidiano e o espaço (como produto social) na totalidade do curso. Cotidiano e espaço são aqui tratados na perspectiva marxista, na linha teórica de G. Lukács (!966) e H. Lefebvre (2013). No senso comum, cotidiano é o que ocorre todos os dias, o banal, o corriqueiro, o repetitivo. Mas nele também nasce a ruptura, a possibilidade de transformação social. O novo, afinal, emerge no cotidiano, e é no espaço que este cotidiano, em sua riqueza e miséria, se realiza. As transformações pelas quais passa o jornalismo como fazer profissional e também como negócio, porém, estão afastando o estudante e o jornalista do cotidiano e da experiência vivida no espaço.

A proposição-chave para compreender o espaço lefebvriano assim se coloca: o espaço (social) é um produto (social). Cada sociedade produz seu espaço no processo histórico da produção social, e assim o espaço e o tempo são históricos. O espaço serve tanto de instrumento do pensamento como da ação e, simultaneamente, constitui um meio de produção, um meio de controle e, em consequência, um meio de dominação e de poder (LEFEBVRE, 2013, p. 86). De igual modo, na obra do autor, a explicação de como o espaço é produzido se dá pela interconexão de três dimensões ou três níveis do real: o percebido, o concebido e o vivido, articulados, respectivamente, às práticas espaciais, às representações do espaço e aos espaços de representação (LEFEBVRE, 2013, p. 97). A compreensão desta tríade conceitual percebido-concebido-vivido pode permitir ao estudante movimentar-se no espaço de modo crítico, aspirando, na produção jornalística, à intepretação do fato em sua totalidade, na linha teórica do jornalismo como forma de conhecimento cristalizada no singular (GENRO FILHO, 1989), relação desenvolvida em Abreu (2019).

Nos cursos, a teoria de Adelmo é tratada com uma a mais entre outras tantas a serem citadas nas disciplinas tidas como “teóricas”, o balaio das teorias. Tomá-la desta forma é reduzi-la irremediavalmente e não compreender como ela se posiciona em relação ao conhecimento da realidade e, especificamente, deste conhecimento pelo jornalismo, como destaca Osório:

Ao mesmo tempo em que pensa o jornalismo como uma forma de conhecimento, cuja potência epistemológica logo recordarei, Adelmo pensa a prática do jornalismo também como o exercício do conhecimento, na medida em que a apreensão da realidade de modo produtivo e jornalisticamente consequente presume um razoável conhecimento de tal realidade. Essa dimensão epistemológica da práxis jornalística constituía uma das suas principais preocupações quanto à compreensão e aplicação da sua teoria. Antes de tudo, dizia ele, o jornalista deve saber como conhecer a realidade, como dela se aproximar. Considerava esse atributo como algo prévio às técnicas da redação jornalística. (OSÓRIO, 2021)

A citação evidencia que o estudo da contribuição de Adelmo abre aos estudantes a possibilidade de entendimento crítico da realidade, precedendo o conhecimento de técnicas hoje vistas já no primeiro semestre dos cursos. Com base nos currículos, aprende-se a “técnica” de escrita da notícia a partir do “fato” antes da compreensão dos fenômenos que povoam a realidade e das conexões entre eles. Tal compreensão deveria ser a base para todas as disciplinas do curso.

Para isso, o caminho, no ensino, na pesquisa e na extensão, é constituir possibilidades de experiências na perspectiva de Heidegger, como algo que nos acontece, nos alcança, se apodera de nós, nos tomba e nos transforma: “Cuando hablamos de «hacer» una experiencia, esto no significa precisamente que nosotros la hagamos acaecer; hacer significa aquí: sufrir, padecer, tomar lo que nos alcanza receptivamente, aceptar, en la medida en que nos sometemos a ello. Algo se hace, adviene, tiene lugar (1987, p. 143).

Bondía (2002) assinala que a experiência é cada vez mais rara pelo excesso de informação, pelo excesso de opinião, por falta de tempo e por excesso de trabalho. A experiência requer um gesto de interrupção quase impossível no tempo presente, mas é por ela que passa, diz o citado autor, a “abertura para o desconhecido” (BONDÍA, 2002, p. 19). Essa abertura para o desconhecido, o singular, o novo no cotidiano e no espaço é imprescindível para renovar o jornalismo. No ensino, na pesquisa e na extensão, um dos caminhos possíveis é sair da sala de aula e experimentar a rua, a chamada periferia, os lugares de expressão do conflito e da festa, como as caminhadas peripatéticas em percursos urbanos descritas em Peres. O autor afirma que a experiência pelo corpo, e não somente letrada, é vida pulsante, conhecimento vivido que deixará marcas indeléveis no estudante para além da academia: “(...) é totalidade que vai se formando e que somente ele pode vivenciar e passar adiante, como um marinheiro que viajou muitos mares e só a partir daí, para além da cartografia científica e ensinada por fontes secundárias e laboratoriais, começa a compreender o mundo como é construído” (PERES, 2019).

Para este movimento, é imprescindível que o estudante, já nas fases iniciais, conheça a realidade socioespacial do estado, do país, do mundo sob a globalização e seus impactos sociais e ambientais e possa se posicionar de forma crítica, para além da mera soma de informações sem conexão entre si que muitas vezes caracteriza o ensino fundamental e o médio.

É uma articulação do ensino, pesquisa e extensão nos cursos de jornalismo que se apropria das três dimensões que o estudante e o jornalista devem explorar para o espaço se fazer presença no texto em sua totalidade, na perspectiva de H. Lefebvre: a prática social (percebido), o conhecimento/pensamento (concebido) e a prática criadora (vivido), elucidando assim, no fazer jornalístico, a experiência vivida no espaço. 

REFERÊNCIAS 

ABREU, Míriam Santini de. Espaço e cotidiano no jornalismo: crítica da cobertura da imprensa sobre ocupações urbanas em Florianópolis. Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2019. Disponível em: http://tede.ufsc.br/teses/PJOR0134-T.pdf. Acesso em: 20 out. 2024. 

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.19, pp.20-28. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1413-24782002000100003&lng=es&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 20 out. 2024. 

COLLATO, Camila. Jornalismo ambiental em Santa Catarina: direitos humanos e da natureza sob a perspectiva dos grupos RBS e NC. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Florianópolis, 2023. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/254439. Acesso em: 27 out. 2024. 

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, Porto Alegre: Tchê, 1989. 

HEIDEGGER, Martin. La esencia del habla. In: De camino al habla. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1987. 

LEFEBVRE, Henri. La producción del espacio. Espanha: Capitán Swing, 2013. 

LOTH, Moacir. A cobertura de meio ambiente no Jornal de Santa Catarina. In: ROSA, Edson et al. Território e texto: jornalismo ambiental em Santa Catarina. Florianópolis (SC): Pobres & Nojentas; Letra Editorial, 2023, p. 89-90. 

LUKÁCS, Georg. Estetica I: la peculiaridad de lo estético. Barcelona, México: Edições Grijalbo, 1966. 

MAMIGONIAN, A. Projeto integrado de pesquisa: Santa Catarina – sociedade e natureza. Relatório final de pesquisa. Florianópolis, 2003. 

OSÓRIO, Pedro Luiz da Silveira. O jornalismo como forma de conhecimento: o legado de Adelmo Genro Filho. Disponível em: https://faroljornalismo.cc/blog/2021/11/11/o-jornalismo-como-forma-de-conhecimento-o-legado-de-adelmo-genro-filho/ . Acesso em: 11 nov. 2024.

PERES, Lino Fernando Bragança. Percursos urbanos: caminhar para desvendar a cidade. Disponível em: http://professorlinoperes.com.br//pagina/1019/percursos-urbanos-caminhar-para-desvendar-a-. Acesso em: 20 out. 2024. 

SILVA, Anne Patricia Pimentel Nascimento da; SOUZA, Roberta Teixeira de e  VASCONCELLOS, Vera Maria Ramos de. O Estado da Arte ou o Estado do Conhecimento. Educação. Porto Alegre [online]. 2020, vol.43, n.3. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?pid=S1981-25822020000300005&script=sci_abstract. Acesso em: 20 out. 2024. 

VIEIRA, V. P. Meio ambiente em pauta: uma análise sobre as práticas de jornalismo ambiental nos portais de notícia de Blumenau e região. Trabalho de Conclusão de Curso. Curso de Jornalismo, Universidade Regional de Blumenau, FURB, Blumenau, 2021. Disponível em: https://bu.furb.br/docs/MO/2021/368395_1_1.pdf . Acesso em: 31 jan. 2024.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024



Míriam Santini de Abreu, jornalista

Pesquisei os significados do verbo sustentar e eles caem bem para os incômodos provocados por respostas à pergunta do título. Parte deles nasceu de um conjunto de constatações nascidas em grupos de jornalismo virtuais dos quais participo. São as seguintes: 1) quantidade expressiva deste sustento tem vindo hoje de editais de tudo quanto é tipo e fonte; 2) os editais trazem à reflexão a lógica do debate sobre políticas públicas universais ou focalizadas e 3) parte expressiva dos editais distribui recursos de financiadores cuja origem e prática histórica devem ao menos serem alvos de reflexão cuidadosa. 

Trago exemplos: um número significativo de editais tem focado a cobertura jornalística da Amazônia, em especial o dito jornalismo de dados ambientais. Editais para reportagem (e também cursos) nesta área envolvem, por exemplo, a Open Knowledge International, rede cujos parceiros, apoiadores e financiadores incluem o Departamento de Estado dos Estados Unidos, a Fundação Lemann, catalisadora de interesses do grande empresariado, e o Google News Initiative, que “busca combater a desinformação, compartilhar recursos e criar um ecossistema de notícias diverso e inovador” mas, de concreto, está mesmo é matando o jornalismo.

Outra apoiadora destes editais para cursos e coberturas na região amazônica é USAID, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, fundada pelo presidente John F. Kennedy nos anos 1960 e cuja missão é a seguinte: “Em nome do povo americano, promovemos e demonstramos valores democráticos no exterior e avançamos um mundo livre, pacífico e próspero”. Uma breve referência ao que a USAID já fez no Brasil: logo depois do golpe de 1964, apoiado pelo governo dos Estados Unidos, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) firmou acordos de assistência técnica com esta agência que foram a base de uma profunda reforma do ensino brasileiro voltada para os interesses do mercado.

Em maio passado, a agência anunciou um investimento de 21 milhões de dólares para “apoiar a implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) na Amazônia brasileira”. Segundo o site da USAID Brasil, os “projetos representam a continuação de uma colaboração de longa data entre o Brasil e os Estados Unidos, que já se estende por 200 anos”. A tal parceria conta com a participação de diversos órgãos governamentais e entidades, como a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). São, portanto, órgãos do governo brasileiro a serviço dos interesses dos Estados Unidos na região detentora de primeiros lugares em quesitos (água, floresta, recursos minerais) tomados como mercadoria nos negócios destruidores da natureza.

O documento “Estratégia climática da USAID 2022-2030” (disponível em https://www.usaid.gov/sites/default/files/2023-02/USAID-Climate-Strategy-BR-Portuguese.pdf) merece leitura atenta. Ele indica que os “parceiros” preferenciais da agência são “Povos Indígenas, comunidades locais, mulheres, jovens e outros grupos marginalizados e/ou com pequena representação em pelo menos 40 países parceiros”. É o público mais frequentemente citado para atendimento nos editais. 

Segundo a USAID, os “grupos marginalizados e com pequena representação podem incluir, mas não estão limitados a, mulheres e jovens com atenção especial para meninas, pessoas com deficiência, pessoas LGBTQI+, pessoas deslocadas, migrantes, povos e comunidades indígenas, crianças na adversidade e suas famílias, idosos, minorias religiosas, grupos étnicos e raciais, pessoas em castas inferiores, pessoas com necessidades de saúde mental não satisfeitas e pessoas de diversas classes econômicas e opiniões políticas”.  

A página 19 do documento traz uma justificativa importante:

“Povos Indígenas e comunidades locais são os principais interessados e agentes de mudança para enfrentar a crise climática. Os Povos Indígenas e comunidades locais têm direitos de posse e/ou gestão de mais de um quarto das terras do mundo, que se cruzam com 40 por cento das Áreas Protegidas terrestres, paisagens intactas e ecossistemas críticos. Existem evidências claras e crescentes de que as terras que os Povos Indígenas e as comunidades locais administram são altamente eficazes para sequestrar as emissões e promover a adaptação através da gestão da terra e da água”.

Pois é! Tudo negócio! O fato é que, como diz a professora Camila Feix Vidal, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e integrante do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC), essas agências, com alegadas razões humanitárias e sob roupagem virtuosa, escondem interesses materiais bem concretos, entre eles dominar, entre outros, o conhecimento dos povos originários. A palestra na qual Camila fala sobre o assunto, promovida pelo IELA/UFSC, pode ser vista em https://www.youtube.com/watch?v=j6__1iklgww.

É nesta perspectiva que deve ser lida a menção do documento à mídia: “Apoiar a sociedade civil e a mídia, incluindo organizações lideradas por cidadãos e jovens, mídia independente e jornalismo investigativo para se engajar de forma segura e eficaz na defesa, educação, monitoramento e divulgação dos objetivos e ações climáticas”.  

Pensando nos significados do verbo sustentar, tomo o de “perpetuar” para que organizações e coletivos que funcionam com recursos dessas agências fiquem de olho para identificar que realidade perpetuam. Não se trata de certo ou errado, e sim de não cair em contradição na defesa do jornalismo a serviço da emancipação humana, na perspectiva da teoria marxista do jornalismo do teórico gaúcho Adelmo Genro Filho.

DINHEIRO PÚBLICO

Os editais em diferentes áreas aparecem como saída para pessoas, coletivos, associações etc que buscam fazer o jornalismo hoje cada vez mais raro nas empresas jornalísticas, aquele capaz de interpretar a realidade na perspectiva da totalidade. Uma questão a ser pensada, porém, é que esses editais atendem geralmente perspectivas focalizadas de jornalismo. Isto não seria um problema se estivesse quitada a dívida com o jornalismo que aspira à compreensão da totalidade dos fenômenos da realidade. Os recursos alimentam a sobrevivência das capelas, mas quem alimenta a sobrevivência da catedral?

Os editais mascaram uma situação perversa: a recente divulgação, pelo Ministério da Fazenda, da lista das empresas beneficiadas por renúncias fiscais apresenta mais de uma dezena de empresas de comunicação. São milhões de reais que deixam de ir para os cofres públicos, alimentando o caixa de grupos de mídia diariamente refestelados no mercado noticioso da ideologia enquanto pingam, dos editais, recursos magros para o jornalismo efetivamente comprometido com a maioria da população.

Em Santa Catarina, onde os dois maiores grupos de mídia transformam os portais em boletins de ocorrência e sucessão de banalidades, o jornalismo vai rapidamente morrendo enquanto crescem os repasses de recursos públicos por eles recebidos. Tal situação foi levada à bancada do PT e do PSOL ainda no primeiro semestre, mas de lá para cá nada mudou. A comunicação/jornalismo não aparece como prioridade no campo partidário progressista catarinense, ao contrário dos grupos dominantes, que não descuidam de suas usinas ideológicas regadas a dinheiro público.

A página da Assembleia Legislativa escancara o fato. No link sobre Despesas e Receitas/Contratos de Publicidade, aparecem centenas de repasses de janeiro até o final de novembro. Os repasses, beneficiando especialmente os associados da Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão (Acaert), jorram da ALESC, do governo do estado, do Ministério Público estadual e do Tribunal de Contas, sem falar do dinheiro repassado por prefeituras, e não se ouve um pio. As poucas verbas que caem deste pires gigante, sobras de uma ou outra campanha publicitária que o nosso campo partidário eventualmente consegue acessar, são repassadas a uma ou outra entidade sem que se conheçam os critérios, e o mesmo vale para eventuais emendas parlamentares quando, muito raramente, se lembram do jornalismo. Na real, o jornalismo vale pouco para o nosso campo. 

JORNALISMO CONTRA-HEGEMÔNICO

O jornalismo contra-hegemônico implica um projeto contra-hegemônico que o sustente. Por isso, a lógica que move coletivos independentes é buscar apoio nas centrais sindicais, sindicatos, partidos e movimentos populares que lutam pela constituição de outra forma de organização social. No primeiro semestre, buscamos neste meio, em Florianópolis, possibilidades de apoio para a produção de um veículo de comunicação que fizesse jornalismo em um período tão pródigo em disseminação de ideologia quanto o período eleitoral. Sem fatiar, segmentar, fragmentar, focalizar. Jornalismo para cobrir a cidade e a vida da população. A repercussão do pedido de apoio foi quase nula. 

Percebe-se que, também no campo popular, a constituição de “capelas” é a prioridade. O investimento, quando há, vai para materiais e redes sociais próprias, com raras exceções. Numa capital de 500 mil habitantes, também não conseguimos 100 apoiadores individuais que paguem 100,00 ou 200 que paguem 50 para ao menos mantermos um portal de notícias. Em Porto Alegre, por exemplo, Sul21Brasil de Fato RS e Matinal fazem jornalismo independente sem fatiar os fenômenos da realidade. A descrição de seus perfis no Instagram traz essa percepção: Matinal: “Jornalismo local e cultura de Porto Alegre. Porto para quem se importa”; Brasil de Fato RS: “Uma visão popular do Rio Grande do Sul, do Brasil e do mundo”. Sul 21: “Jornalismo independente e de impacto social”. 

Para concluir, recorro a outros cinco significados do verbo sustentar: 

- Impedir que alguma coisa caia.

- Fazer frente a; resistir a.

- Alimentar; dar o necessário para viver a.

- Fortificar; defender.

- Pelejar a favor de; defender com argumentos. 

E pergunto: quem, nesta ilha de jornalismo desterrado, vai pelejar por nós e sustentar o Jornalismo?

A relação sociedade-natureza no ensino do jornalismo

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