Míriam Santini de Abreu - jornalista
Apresentei resumo expandido de Comunicação Científica no Encontro Regional Sul e no Encontro Regional Centro-Oeste de Ensino de Jornalismo (Erejor Sul e Erejor Centro-Oeste) sobre a relação sociedade-natureza no ensino do jornalismo.
Seguem considerações sobre a realidade em Santa Catarina que podem servir de reflexão para o ensino do jornalismo em outros estados.
A RELAÇÃO SOCIEDADE-NATUREZA NO ENSINO DO JORNALISMO
A chamada crise climática visibiliza de modo
contundente a relação entre sociedade e natureza sob a atual fase do modo de
produção capitalista. Fenômenos como enchentes e secas cada vez mais frequentes
e intensos são expressões desta realidade e recebem cobertura jornalística
episódica em Santa Catarina. A preocupação desta Comunicação Científica é
apresentar caminhos para o ensino do jornalismo no estado abrir-se a esta
realidade e à complexa formação socioespacial catarinense e a partir dela
incorporar (adicionar algo novo a determinado ser ou corpo, conjunto ou
realidade) o cotidiano e o espaço (como produto social) na totalidade do curso
e na formação integral do estudante.
Poderia se advogar a necessidade de os
cursos oferecerem disciplinas como jornalismo ambiental, especialização
jornalística consolidada no Brasil no último quarto do século XX, mas não
basta. Iniciativas nesta direção em Santa Catarina revelam-se insuficientes
para enriquecer, com os estudantes, a experiência do corpo no espaço e no
cotidiano. São iniciativas que exibem poucos resultados no ensino, na pesquisa
e na extensão e morrem pouco a pouco no curso dos semestres. Há que investigar
até que ponto esta constatação se reflete na cobertura jornalística, por sua
vez mediada pelos interesses empresariais, visto que da década de 1980 para cá
foram diminuindo as iniciativas de cadernos, editorias ou mesmo coberturas mais
abrangentes com pauta ambiental no estado.
Para apresentar dados, realizou-se
investigação específica sobre as pesquisas no Catálogo de Teses e Dissertações
da Capes e nos repositórios institucionais das universidades públicas
(Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Universidade Federal da
Fronteira Sul – UFFS e Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC) e do
Sistema Acafe (Associação Catarinense das Fundações Educacionais), a partir do
termo “jornalismo ambiental”. Cabe citar que nem todos os repositórios das
universidades comunitárias (Sistema Acafe) são abertos para não-membros da
comunidade acadêmica e nem apresentam a totalidade dos trabalhos produzidos por
aquelas universidades. Para ampliar o
escopo de materiais, recorreu-se às referências bibliográficas dos Trabalhos de
Conclusão de Curso (TCCs), dissertações, artigos e livros encontrados sobre o
tema. A partir daí, organizou-se
repositório de pesquisas na perspectiva do Estado da Arte e o Estado do
Conhecimento, para “rever caminhos percorridos, portanto possíveis de serem
mais uma vez visitados por novas pesquisas, de modo a favorecer a
sistematização, a organização e o acesso às produções científicas e à
democratização do conhecimento (SILVA et al, 2020, p.2). As pesquisas
encontradas estão disponíveis em https://jornalismoambientalsc.blogspot.com/p/pesquisas_99.html
O levantamento no Catálogo de Teses e
Dissertações da Capes, realizado em agosto de 2024, com o termo “Jornalismo
ambiental”, apresentou 194 resultados. Refinados por Instituição,
especificamente a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a
Universidade Regional de Blumenau (FURB) – as duas únicas de Santa Catarina
relacionadas –, o resultado baixou para 10. A leitura do material, porém,
mostrou que apenas 4 tinham relação com o termo pesquisado, todas elas
dissertações de mestrado.
A ampliação da busca, conforme os
critérios já indicados, revelou a existência de 7 Trabalhos de Conclusão de
Curso (TCCs), 6 dissertações (inclusive as 4 já mencionadas), 11 artigos e 2
livros. A mais antiga pesquisa localizada foi dissertação de mestrado defendida
no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFSC, em 2004, analisando o
discurso jornalístico sobre o desenvolvimento sustentável em dois veículos
impressos, a qual foi publicada em livro em 2006. A mais recente, de 2024, foi
outra dissertação de mestrado com ênfase nos direitos humanos e da natureza sob
a perspectiva de dois grupos de mídia de Santa Catarina, defendida junto ao
Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC.
Na análise dos materiais, percebe-se
que a revisão bibliográfica das pesquisas traz o conhecimento do jornalismo em
geral e do jornalismo ambiental em particular, mas as pesquisas,
independentemente da orientação teórico-metodológica e dos objetos empíricos,
em geral não dialogam com trabalhos anteriores, ainda que poucos, produzidos no
estado. A mais recente pesquisa encontrada, da jornalista Camila Collato,
dialoga com trabalhos anteriores e conclui o seguinte em relação à cobertura
dos jornais A Notícia (AN), Diário Catarinense (DC) e Jornal de Santa Catarina
(JSC), no período de 2014 a 2018: a) a cobertura privilegia uma constituição
antropocêntrica de sentidos, apoiando-se em uma base científica moderna em relação
ao meio ambiente, sendo este abordado majoritariamente por meio do dualismo
humano x Natureza; b) é fragmentária, ao apresentar uma baixa interlocução
entre áreas de conhecimento e saberes e; c) por vezes, é fatalista, ao
furtar-se do papel de fomentador de um debate público crítico sobre
responsabilidades e possíveis soluções diante dos problemas ambientais
enfrentados pela população.
É uma pesquisa importante por apontar
as limitações da cobertura jornalística sobre a relação sociedade-natureza em
Santa Catarina. Destaca-se que, nos anos de 1978 e 1979, havia duas páginas
inteiras dedicadas ao meio ambiente no Jornal de Santa Catarina, publicadas no
final de semana com edição do jornalista blumenauense Moacir Loth em parceria
com a Associação Catarinense de Preservação da Natureza (Acaprena), fundada em
1973. Provavelmente, trata-se de uma das primeiras iniciativas no país de uma
editoria dedicada exclusivamente ao meio ambiente. Segundo Loth (2023), essa
editoria alçou, involuntariamente, o Jornal de Santa Catarina na vanguarda do
que seria mais tarde conhecido como jornalismo ambiental.
Atualmente, no estado, o site do
jornal O Blumenauense tem uma aba específica denominada Meio Ambiente dentro do
link Geral. A primeira notícia é datada de 11 de outubro de 2013. São,
portanto, 11 anos de cobertura. A Folha Metropolitana, de Joinville, também
exibe, no menu do site, o link Meio Ambiente. A primeira notícia com a cartola
MEIO AMBIENTE é datada de 28 de julho de 2022. São iniciativas que merecem pesquisas
específicas sobre conteúdos e discursos, sendo uma delas a de Vieira (2021),
que, em Trabalho de Conclusão de Curso, analisa as práticas de jornalismo
ambiental nos portais de notícia de Blumenau e região.
A pouca quantidade de pesquisas e
veículos encontrados é incompatível com a realidade socioespacial diversa de
Santa Catarina e a necessidade de um jornalismo que a interprete. O geógrafo
Armen Mamigonian (2003) afirma que, no decorrer do processo histórico,
delinearam-se em Santa Catarina três regiões industriais importantes
identificadas como a região alemã, o Oeste agroindustrial e a região
carbonífero-cerâmica do Sul. Cada uma dessas regiões lida com impactos
ambientais comuns, como o desmatamento e a poluição do solo e da água, mas
singulares na forma como se expressam no cotidiano da população. Porém, o
jornalismo catarinense não tem abordado tão complexa realidade e parte
expressiva das pesquisas científicas localizadas também não leva em conta essas
particularidades socioespaciais.
O caminho, para além da oferta de
disciplinas eventuais, é levar o estudante a experenciar o cotidiano e o espaço
(como produto social) na totalidade do curso. Cotidiano e espaço são aqui
tratados na perspectiva marxista, na linha teórica de G. Lukács (!966) e H.
Lefebvre (2013). No senso comum, cotidiano é o que ocorre todos os dias, o
banal, o corriqueiro, o repetitivo. Mas nele também nasce a ruptura, a
possibilidade de transformação social. O novo, afinal, emerge no cotidiano, e é
no espaço que este cotidiano, em sua riqueza e miséria, se realiza. As
transformações pelas quais passa o jornalismo como fazer profissional e também
como negócio, porém, estão afastando o estudante e o jornalista do cotidiano e
da experiência vivida no espaço.
A proposição-chave para compreender o
espaço lefebvriano assim se coloca: o espaço (social) é um produto (social).
Cada sociedade produz seu espaço no processo histórico da produção social, e
assim o espaço e o tempo são históricos. O espaço serve tanto de instrumento do
pensamento como da ação e, simultaneamente, constitui um meio de produção, um
meio de controle e, em consequência, um meio de dominação e de poder (LEFEBVRE,
2013, p. 86). De igual modo, na obra do autor, a explicação de como o espaço é
produzido se dá pela interconexão de três dimensões ou três níveis do real: o
percebido, o concebido e o vivido, articulados, respectivamente, às práticas
espaciais, às representações do espaço e aos espaços de representação
(LEFEBVRE, 2013, p. 97). A compreensão desta tríade conceitual
percebido-concebido-vivido pode permitir ao estudante movimentar-se no espaço
de modo crítico, aspirando, na produção jornalística, à intepretação do fato em
sua totalidade, na linha teórica do jornalismo como forma de conhecimento
cristalizada no singular (GENRO FILHO, 1989), relação desenvolvida em Abreu
(2019).
Nos cursos, a teoria de Adelmo é
tratada com uma a mais entre outras tantas a serem citadas nas disciplinas
tidas como “teóricas”, o balaio das teorias. Tomá-la desta forma é reduzi-la
irremediavalmente e não compreender como ela se posiciona em relação ao
conhecimento da realidade e, especificamente, deste conhecimento pelo
jornalismo, como destaca Osório:
Ao mesmo tempo em que pensa
o jornalismo como uma forma de conhecimento, cuja potência epistemológica logo
recordarei, Adelmo pensa a prática do jornalismo também como o exercício do
conhecimento, na medida em que a apreensão da realidade de modo produtivo e
jornalisticamente consequente presume um razoável conhecimento de tal
realidade. Essa dimensão epistemológica da práxis jornalística constituía uma
das suas principais preocupações quanto à compreensão e aplicação da sua
teoria. Antes de tudo, dizia ele, o jornalista deve saber como conhecer a
realidade, como dela se aproximar. Considerava esse atributo como algo prévio
às técnicas da redação jornalística. (OSÓRIO, 2021)
A citação evidencia que o estudo da
contribuição de Adelmo abre aos estudantes a possibilidade de entendimento
crítico da realidade, precedendo o conhecimento de técnicas hoje vistas já no
primeiro semestre dos cursos. Com base nos currículos, aprende-se a “técnica”
de escrita da notícia a partir do “fato” antes da compreensão dos fenômenos que
povoam a realidade e das conexões entre eles. Tal compreensão deveria ser a base
para todas as disciplinas do curso.
Para isso, o caminho, no ensino, na
pesquisa e na extensão, é constituir possibilidades de experiências na
perspectiva de Heidegger, como algo que nos acontece, nos alcança, se apodera
de nós, nos tomba e nos transforma: “Cuando hablamos de «hacer» una
experiencia, esto no significa precisamente que nosotros la hagamos acaecer; hacer
significa aquí: sufrir, padecer, tomar lo que nos alcanza receptivamente,
aceptar, en la medida en que nos sometemos a ello. Algo se hace, adviene, tiene
lugar (1987, p. 143).
Bondía (2002) assinala que a
experiência é cada vez mais rara pelo excesso de informação, pelo excesso de
opinião, por falta de tempo e por excesso de trabalho. A experiência requer um
gesto de interrupção quase impossível no tempo presente, mas é por ela que
passa, diz o citado autor, a “abertura para o desconhecido” (BONDÍA, 2002, p.
19). Essa abertura para o desconhecido, o singular, o novo no cotidiano e no
espaço é imprescindível para renovar o jornalismo. No ensino, na pesquisa e na
extensão, um dos caminhos possíveis é sair da sala de aula e experimentar a
rua, a chamada periferia, os lugares de expressão do conflito e da festa, como
as caminhadas peripatéticas em percursos urbanos descritas em Peres. O autor
afirma que a experiência pelo corpo, e não somente letrada, é vida pulsante,
conhecimento vivido que deixará marcas indeléveis no estudante para além da
academia: “(...) é totalidade que vai se formando e que somente ele pode
vivenciar e passar adiante, como um marinheiro que viajou muitos mares e só a
partir daí, para além da cartografia científica e ensinada por fontes
secundárias e laboratoriais, começa a compreender o mundo como é construído”
(PERES, 2019).
Para este movimento, é imprescindível
que o estudante, já nas fases iniciais, conheça a realidade socioespacial do
estado, do país, do mundo sob a globalização e seus impactos sociais e
ambientais e possa se posicionar de forma crítica, para além da mera soma de
informações sem conexão entre si que muitas vezes caracteriza o ensino
fundamental e o médio.
É uma articulação do ensino, pesquisa e extensão nos cursos de jornalismo que se apropria das três dimensões que o estudante e o jornalista devem explorar para o espaço se fazer presença no texto em sua totalidade, na perspectiva de H. Lefebvre: a prática social (percebido), o conhecimento/pensamento (concebido) e a prática criadora (vivido), elucidando assim, no fazer jornalístico, a experiência vivida no espaço.
REFERÊNCIAS
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