Por Míriam Santini de Abreu, jornalista
Os veículos de comunicação anunciaram de forma oficialesca o lançamento, em setembro, do documento intitulado “Uma abordagem preliminar da Economia Verde no estado de Santa Catarina”, nascido das entranhas do governo Jorginho Mello. São 36 páginas de estatísticas e lugares-comuns que mascaram, pelos mecanismos ideológicos, a realidade socioambiental catarinense.
O Jornal do Almoço, do grupo NSC/Globo, divulgou notícia em 18 de setembro [1] e limitou-se a reproduzir as informações do documento e entrevistar o secretário de Planejamento e o governador. Jorginho Mello disse que a intenção é remunerar os pequenos agricultores pelo que eles já preservam em suas propriedades, mantendo matas e mananciais. Destaco o trecho final da entrevista: “Nós somos um estado que cuidamos da natureza, mas a gente quer ter este ativo ao nosso favor para que a gente consiga daqui um pouco ter a capacidade de vender na bolsa de valores, enfim, e crédito de carbono". Os dados, finaliza a repórter, irão subsidiar políticas públicas relacionadas à preservação ambiental e à economia.
No mesmo dia, o Balanço Geral Florianópolis, do grupo ND/Record, também noticiou o levantamento entrevistando apenas o secretário de Planejamento, que fala sobre e estudo e informa a mudança, viabilizada pela reforma administrativa de Mello, da Secretaria de Estado do Meio Ambiente em Secretaria de Estado do Meio Ambiente e da Economia Verde.
Nos portais noticiosos dos grupos, a cobertura seguiu na mesma lógica, limitando-se às fontes do governo. Não encontrei uma boa reportagem com outras fontes para interpretar os dados, tensionar o discurso do governo e desvendar o que está atrás das estatísticas.
A dita economia verde foi apresentada em 2008 pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, em 2014, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) mensurou a alocação de recursos nas atividades econômicas de acordo com a classificação delas na perspectiva da economia verde. Usando a metodologia da associação dos banqueiros é que o governo Jorginho Mello fez o estudo. Os dados divulgados afirmam, por exemplo, que 90% do agro catarinense é considerado “verde”.
Faço um recorte neste setor porque a Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira, 19, projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono no Brasil e uma das críticas é justamente a exclusão de setores como o agropecuário. Assim, as emissões indiretas de dióxido de carbono e outros gases relacionados ao aquecimento global decorrentes da produção de insumos ou matérias-primas agropecuárias não serão consideradas para impor obrigações de contenção de emissão de gases. O agro pressionou, recorreu a subterfúgios e ficou de fora.
Quem fez, a meu pedido, uma análise sucinta e precisa foi o biólogo, ambientalista e professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), João de Deus Medeiros, fonte indispensável para quem pesquisa o assunto no estado. Transcrevo-a seguir (em itálico):
Esse documento é uma peça de propaganda completamente descolado da realidade.
SC ainda mantém termoelétrica movida a carvão, com subsídio do governo federal, não controla o desmatamento (veja os dados da operação Mata Atlântica em Pé [3], conduzida em setembro), mais de 90% dos registros de CAR (Cadastro Ambiental Rural) não foram avaliados pelo IMA (Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina), os altos níveis de utilização de agrotóxicos persistem, os recursos hídricos superficiais, em grande proporção, estão com algum grau de comprometimento, a exploração do Aquífero Guarani segue sem maior critério e seu nível já registra baixa evidente e empresas de silvicultura avançam sobre Campos de Altitude da Mata Atlântica, se valendo de um conceito “singular” trazido pelo Código Estadual do Meio Ambiente.
A propósito, se o estado estivesse assim tão “verde” por que razão toda essa pressão para atropelar a legislação nacional de proteção ambiental? Afinal foi isso que fizeram com a aprovação do Código Estadual do Meio Ambiente [2022], o qual inclusive já teve diversos dispositivos declarados inconstitucionais pelo TJSC [Tribunal de Justiça de Santa Catarina].
Adicionalmente, esse material foi produzido sem qualquer debate ou submetido a alguma avaliação crítica.
Um documento que sequer mostra-se estratégico para “vender” uma imagem mais positiva do Estado. É tão exagerado que não permite um mínimo de credibilidade.
Sem surpresas, mera peça de “greenwashing” muito mal produzida. O Corredor das Nascentes foi publicado no apagar das luzes do governo Moisés; atual governo cogitou inclusive a sua revogação. O dado concreto é que, no caso desse Corredor [citado no documento], nenhuma medida concreta para implementação do mesmo foi tomada até o momento.
O documento até menciona o Inventário Florístico Florestal de SC, mas omite que ele destaca que todos os remanescentes florestais nativos no estado estão altamente empobrecidos. São, na maioria dos casos, florestas secundárias com baixa diversidade de espécies.
Mas o documento ainda insiste no estímulo ao “manejo florestal”, não citando que isso conflita com a Lei da Mata Atlântica. O dispositivo que tentaram implantar no Código Estadual (Projeto Conservacionista da Araucária) para “legalizar” o manejo florestal já foi declarado inconstitucional por decisão do TJSC.
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Com a aprovação do projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono no Brasil e a fala do governador assumindo a possibilidade de venda de créditos de carbono na bolsa de valores, o assunto exige reportagens de fôlego, do tipo que não tem mais lugar e espaço nos grupos de mídia de Santa Catarina.
Veja o documento aqui: https://www.semae.sc.gov.br/wp-content/uploads/2024/09/Revista-Economia-Verde-DIGITAL.pdf
[1]https://globoplay.globo.com/v/12933261/
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