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Ato no Sul da Ilha de Santa Catarina contra a verticalização - Milton Ostetto |
Por Míriam Santini de Abreu
A realização no Brasil da 30ª
Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, no mês de
novembro em Belém (PA), não pegou desprevenido o jornalismo especializado na
área no país. São décadas de acúmulo teórico, criação de veículos especializados,
debates, articulação em rede, produção de importantes coberturas jornalísticas.
Pesquisadora do tema desde o final dos anos 1990, vim alinhavando impressões
nos últimos anos e concluí que ainda há coisas a dizer sobre o chamado
jornalismo ambiental.
Do ponto de vista do jornalismo em geral, este artigo
toma o papel da imprensa tradicional/hegemônica como o de manutenção da ordem
social e, em contrapartida, o da imprensa
independente/alternativa/contra-hegemônica como o de crítica a esta ordem para
a construção de outro modo de organização social. O fato é que as formas de
nomear os novos arranjos ou experiências de jornalismo são inúmeras e as
pesquisas mostram que a imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica
pode, muitas vezes, reproduzir rotinas de trabalho e de fazer jornalísticos
semelhantes às da imprensa tradicional/hegemônica.
Mas a imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica
tem mais potencial do que a tradicional/hegemônica para, pelo jornalismo,
produzir conhecimento capaz de elucidar criticamente a relação entre sociedade
e natureza no texto jornalístico, noção que costumo adotar em minhas reflexões
sobre o chamado jornalismo ambiental. É nesta perspectiva que o artigo adota,
doravante, a expressão jornalismo/imprensa independente.
As considerações a seguir são voltadas para a imprensa
independente especializada no jornalismo ambiental, não cabendo para o
jornalismo informativo e opinativo sobre temas ambientais circulando na
imprensa tradicional (com mais ou menos elementos característicos do jornalismo
ambiental) por esta mover-se pela lógica da notícia como valor de troca, como
mercadoria.
O conjunto de profissionais que se identificam com o
jornalismo ambiental atua na imprensa tradicional, independente, em assessoria de
organizações ambientais, agências de
notícias, universidades, institutos de pesquisa, freelancers. Toma-se
como pressuposto que esses profissionais corroboram, no geral, os princípios do
jornalismo ambiental geralmente adotados em pesquisas acadêmicas no país:
Assim, para que uma reportagem seja
considerada Jornalismo Ambiental deve apresentar algumas das seguintes
características: mostrar uma visão sistêmica dos fatos; dar conta da
complexidade dos eventos ambientais; contemplar a diversidade dos saberes e não
ser refém de fontes oficiais; defender a biodiversidade e a vida em sua
plenitude, o que significa deixar de ser imparcial; assumir seu papel
educativo, cidadão e transformador. Tais aspectos também podem ser contemplados
ao longo de uma série de reportagens (GIRARDI, p. 19-20)
Publicação do ICFJ (International Center for
Journalists) sobre o jornalismo ambiental na América Latina e no Caribe
destaca as seguintes características:
Características del periodismo ambiental.
• Es periodismo de investigación.
• Utiliza la ciencia para explicar
problemáticas y fenómenos.
• Fomenta la cultura ecológica.
• Alerta oportunamente a la sociedad sobre
las consecuencias de daños ecológicos.
• Documenta iniciativas y proyectos
sustentables/ecológicos.
• Tiene riqueza de fuentes de información.
• Señala alternativas y posibles soluciones
de un conflito ecológico.
• Da voz a la naturaleza, los animales, el
paisaje.
• Utiliza un lenguaje creativo, informa sin
ser aburrido (ICFJ, 2018, p. 6).
Minhas pesquisas se movem pela teoria
marxista de jornalismo de Adelmo Genro Filho (1989), que compreende o
conhecimento como práxis – uma atividade de mútua produção entre sujeito e
objeto – e a realidade social como totalidade. Para construir sua teoria do
jornalismo, Genro Filho se alicerça nas categorias filosóficas do singular,
particular e universal erigidas por G. Hegel e usadas na teoria de G. Lukács
sobre a arte. Sustentando-se nesses autores, Genro Filho acentua que existe uma
relação dialética entre as três categorias (singular, particular e universal).
Cada um dos conceitos expressa as diferentes dimensões que compõem a realidade
e, ao mesmo tempo, compreende em si as demais.
O aparecimento histórico do jornalismo, para
o autor, “[...] implica uma modalidade de conhecimento social que, a partir de
um movimento lógico oposto ao movimento que anima a ciência, constrói-se
deliberada e conscientemente na direção do singular” (GENRO FILHO, 1989, p.
160). Em termos mais concretos, o aspecto central do jornalismo como gênero de
conhecimento é “(...) a apropriação do real pela via da singularidade,
ou seja, pela reconstituição da integridade de sua dimensão fenomênica” (GENRO
FILHO, 1989, p. 58, com grifo no original).
Um aspecto fundamental da teoria de Genro
Filho é a relação que ela tem com a emergência do novo e a possibilidade que o
jornalismo tem de apreendê-lo na linguagem articulando fatos singulares
(únicos, irrepetíveis) às dimensões filosóficas do particular e do universal,
aspirando à totalidade. Na discussão sobre os fenômenos e acontecimentos que
povoam o cotidiano, o autor ressalta que ambos “(...) precisam ser percebidos
como processos incompletos que se articulam e se superpõem para que possamos
manter uma determinada ‘abertura de sentido’ em relação a sua significação”
(GENRO FILHO, 1989, p. 36). No jornalismo, isso implica perceber o novo na vida
social e estar atento à sua irrupção na vida cotidiana.
Por isso, tenho trabalhado, como já dito, a
relação entre sociedade e natureza no texto jornalístico em sua totalidade, no
entendimento de que tal relação deve ser intrínseca ao jornalismo de crítica da
vida cotidiana e a serviço da desalienação e da emancipação humana,
independentemente de editorias e especializações.
Mas, à medida que se consolida como especialização, o
jornalismo ambiental se expressa no fazer jornalístico na imprensa (tradicional
e independente) e no fazer acadêmico (cursos, disciplinas, pesquisas, projetos,
editais, livros, eventos), uma alimentando-se da outra. A observação e análise
das duas vertentes, no campo do jornalismo ambiental brasileiro na imprensa
independente, permitem as observações a seguir:
1 – Perspectiva anticapitalista
O jornalismo ambiental brasileiro precisa se mover na
perspectiva anticapitalista como horizonte de atuação. Ainda que parte dos
jornalistas ambientais também se assumam como militantes ambientalistas, a
cobertura jornalística no geral caminha mais pelo ambientalismo crítico do que
pelo ecossocialismo. Tomando a imprensa como instrumento de um projeto
político, a falta também deriva da realidade do campo político-partidário
brasileiro, em que a perspectiva anticapitalista é minoritária e, quando
explicitada, necessariamente não tem a relação entre sociedade e natureza como
pauta prioritária; se tem, é uma pauta muitas vezes alinhada com soluções
capitalistas, como a aposta no mercado de carbono, ou afirmada em discursos
genéricos como o da sustentabilidade.
Sem essa perspectiva, contra o quê e em que termos luta e
se posiciona o jornalismo ambiental brasileiro? O impasse pode ser melhor
compreendido no debate, por exemplo, sobre a transição energética. Essa
transição, afirma Barreto (2018; 2024), é impossível nos marcos da sociedade
capitalista, que produz necessariamente a tragédia ambiental contemporânea.
A cobertura jornalística das mudanças climáticas e
desastres climáticos, atualmente já constituindo mais um nicho acadêmico e de
atuação profissional, o chamado jornalismo climático, tem estreita relação com
a transição energética, e é certo que pautas com e sem perspectiva
anticapitalista levam a rumos diferentes de abordagens e fontes. Há então que,
no jornalismo ambiental, desmontar a naturalização do capital e seus limites de
estratégias para redução de impactos e de adaptação às mudanças climáticas e
priorizar abordagens e fontes na perspectiva apontada pelo autor, de “radical
subversão da lógica do capital e de todo o ordenamento social que a ela
corresponde” (BARRETO, 2018, p. 20).
Barreto assinala que o projeto de uma nova sociedade deve vir
acompanhado de uma reconfiguração maciça da estrutura produtiva e dos hábitos
de consumo. definida e hierarquizada segundo critérios coletivamente
estabelecidos (2018, p. 213), sendo esses, portanto, dois potenciais caminhos
para a produção de pautas e coberturas jornalísticas.
2 – Jornalismo de classe
A perspectiva anticapitalista deve estar amarrada a
outra, a de classe, na senda da crítica de Guimarães (2015). A partir da
perspectiva gramsciana, a autora critica o jornalismo hegemônico e aponta
caminhos para o contra-hegemônico, erodindo as bases de sustentação do moderno
jornalismo para mostrar como o jornalismo contra-hegemônico pode constituir uma
prática efetivamente a serviço da emancipação humana. Para o enfrentamento da
hegemonia no campo da imprensa, Guimarães sugere ao jornalismo que se pretende
contra-hegemônico um deslocamento necessário na função do jornalismo: 1)
do esclarecimento para a construção da consciência, e 2) da mudança do sujeito
para quem essa prática deve se voltar, movendo-se do indivíduo para a classe
(2015, p. 231).
A função contra-hegemônica possível de ser exercida por
uma imprensa que se quer alternativa é o esforço de fazer aflorarem as
contradições, desvelar a ideologia, expor aquilo que, de outro lado, no
contexto do capitalismo, encontra-se nublado e invertido. É um movimento
de dar unidade e coerência ao que, no jornalismo hegemônico, aparece
fragmentado e caótico, enfrentando assim a heterogeneidade própria do
cotidiano. Portanto, não basta a denúncia da manipulação promovida pela
comunicação hegemônica. Há que desvendá-la por dentro da lógica de sua narrativa.
O jornalismo contra-hegemônico tem então a função
primordial de pensar a realidade em sua totalidade, no esforço “(...) de desideologização,
de desvelamento, daquilo que, de outro lado, no contexto do capitalismo,
encontra-se nublado e invertido” (GUIMARÃES, 2015, p. 23, com grifos no
original). A ideologia, afirma Silva, “(...) é, fundamental e essencialmente,
um modo de ver a realidade social que não contempla senão a aparência dos
processos, seu modo de manifestar-se exteriormente, e oculta – sabendo-o ou não
– o caráter profundo, estrutural do processo” (SILVA, 1971, p. 64).
É necessário, portanto, que esse caráter estrutural do
processo, no caso da luta ambiental, seja continuamente enunciado pelo
jornalismo ambiental, sem filtros, com a maior precisão e rigor possíveis, no
caminho do papel que Barreto atribui aos ecossocialistas (BARRETO, 2025, p.
114).
É um jornalismo que deve caminhar na concepção filosófica
de Enrique Dussel, criador da Filosofia da Libertação, que inspirou a proposta
de jornalismo libertador, conceito apresentado por Tavares (2004), pelo qual o
foco do jornalismo volta-se para a comunidade das vítimas do sistema, tal qual
propõe Dussel. A narrativa deve ser cristalizada no singular, evocando o
universal, mas priorizando dar visibilidade à vida do oprimido, saindo assim de
uma forma de praticar jornalismo que se alimenta apenas ou prioritariamente de
fontes oficiais. O jornalismo, afirma Tavares (2004, p. 24), é serviço público,
e só podem existir dois tipos de jornalismo: o que serve a uma minoria
dominante (moral de dominação) e o que serve aos oprimidos, maioria da
população (ética da libertação).
3 – Projeto cooperativo nacional e
internacional
Com o papel estratégico do Brasil no cenário
latino-americano e caribenho, cabe ao jornalismo ambiental brasileiro avançar
na construção de um projeto cooperativo nacional e internacional. Pautas comuns
não faltam: a Amazônia se estende por nove países; o Aquífero Guarani, por
quatro; uso de agrotóxicos; poluição do ar e da água; devastação de florestas.
De tão ou maior importância seria mapear e visibilizar os movimentos de
resistência/insurgência no continente.
A imprensa tradicional/hegemônica faz pouco e mal esta
cobertura, além de criminalizar a luta social, como é caso da luta por terra.
Para além da discussão de nichos conceituais (jornalismo ambiental, jornalismo
climático, comunicação ecoterritorial), muitas vezes de definição imprecisa e
cabível a outras especializações jornalísticas, o caminho é consolidar parcerias
que potencializem a difusão de coberturas jornalísticas importantes.
Na disputa global por recursos de toda ordem, o
jornalismo contra-hegemônico ganha ao se mover por um pensamento estratégico
firmado no princípio da soberania e em uma visão de futuro do longo prazo,
direção apontada por Bruckmann (2012, p. 23).
Isso coloca em centralidade a terra, em sua fecundidade
natural, gerando materialmente a riqueza fundamental, o "valor de
uso" primigênio, primeiro, como diz Dussel. Sem as chamadas coisas "naturais",
o homem não poderia realizar nenhum trabalho. Finalmente, todo trabalho é
transformação (mudar a forma) desta matéria parida pela terra (DUSSEL,
1986, p. 215).
4 – Ensino do saber que importa
Dois fatos se entrecruzam no debate sobre o ensino do
jornalismo. O primeiro é que, com o fim da exigência do diploma para o
exercício profissional, pessoas com formação em diferentes áreas estão
produzindo notícias e reportagens (jornalismo informativo). Antes do fim do
diploma, a situação era mais comum na produção de artigos e colunas (jornalismo
opinativo). Olhares de diferentes disciplinas são importantes, mas há o risco
de a produção jornalística informativa, com toda a sua riqueza conceitual e
técnica (entrevista, narração, descrição) perder espaço para a produção
opinativa, na qual predomina a análise e não o corpo a corpo com a vida, título
de um clássico ensaio de João Antônio sobre o jornalismo.
O segundo fato é que mesmo a graduação em jornalismo não
garante a formação necessária para compreender e narrar a problemática relação
entre sociedade e natureza, e a crítica não cabe apenas ao jornalismo. A
clássica obra de Álvaro Vieira Pinto “A questão da universidade” destaca o
papel da universidade como porta de entrada na compreensão do processo geral da
nossa realidade. Mas tanto na década de 1960, quando o livro foi escrito,
quanto na atualidade, “... a universidade é uma peça do dispositivo geral de
domínio pelo qual a classe dominante exerce o controle social, particularmente
no terreno ideológico, sobre a totalidade do país” (1994, p. 19).
O autor afirma que a classe dominante solicita da
universidade acima de tudo ideias que justifiquem seu poderio (p. 25),
funcionando como anteparo destinado a ocultar a realidade do país à sua própria
consciência (p. 35), um “templo” que não sabe o saber que importa (p. 43).
Reflito sobre a obra de Vieira Pinto à luz da crítica de
Barreto à economia das mudanças climáticas, que traz considerações importantes para
refletir sobre o ensino e a prática do jornalismo na relação entre sociedade e
natureza. Segundo o autor, as respostas do pensamento econômico e das políticas
climáticas são “extensamente mapeadas, não por encontrarmos nelas reflexões
fecundas, mas por encontrarmos ali as formas dominantes nas quais a humanidade
vem se mobilizando diante do desafio” (BARRETO, 2018, p. 19).
As formas dominantes vêm na esteira da naturalização do
capital e cabe, a quem ensina jornalismo, desnaturalizar, elucidar essa lógica
em qualquer disciplina. Mas o ensino do jornalismo, também vitimado pelo
parcelamento da ciência e na linha da crítica de Vieira Pinto, de modo geral
não está comprometido com uma educação totalizante e com o saber que importa. O
ensino das técnicas predomina, assim como as exigências, sempre voláteis, do
mercado. O Ministério da Educação (MEC) divulgou em setembro de 2025 que o
número de alunos em graduação à distância passou, pela primeira vez, o de
cursos presenciais. Este é mais um elemento a ser levado em conta na reflexão
sobre o distanciamento da universidade da vida social e, cada vez mais, da vida
do estudante em sua completude, inclusive física.
Bakhtin (1990), ao analisar a obra do escritor F.
Rabelais, diz que um dos motivos de sua força estava no fato de o autor sair
das vizinhanças habituais e construir vizinhanças inesperadas. Ao ensino do
jornalismo cabe fazer o mesmo, sair das vizinhanças habituais e procurar
vizinhanças inesperadas, ou seja, contribuições de outras áreas de conhecimento.
O parcelamento das ciências fragmenta o cotidiano, impedindo que ele seja
compreendido em sua totalidade. O ensino do jornalismo, ao abrir mão de seu
potencial crítico, faz o mesmo.
5– O papel do cotidiano
O jornalismo ambiental cerca para si um conjunto de
temas, mas rotular pode fazer crescer o risco de deixar abordagens importantes
de fora. Em 2021, um grupo de cientistas publicou artigo no International Journal of Disaster Risk Reduction (LIZARRALDE et al, 2021) explorando como cidadãos e
líderes explicaram os desastres climáticos na América Latina e no Caribe e se
os relacionaram às mudanças climáticas. Eles encontraram cinco narrativas
diferentes, incluindo uma em que os cidadãos acreditam que as mudanças
climáticas são uma "condição que distrai autoridades e pessoas de outros
desafios diários imediatos, como violência, criminalidade, desemprego,
insegurança alimentar e falta de infraestrutura".
Em um dos lugares pesquisados, Salgar (Colômbia), uma
cidade nas montanhas da região de Antioquia, moradores que vivem em ambientes
informais disseram estar mais preocupados com as lutas diárias, como
desemprego, violência, criminalidade e insegurança alimentar, do que com os
efeitos das mudanças climáticas. Muitos deles argumentaram que os efeitos
climáticos tendem a ocorrer apenas em países ricos. No entanto, eles se
mostraram preocupados com os problemas ambientais locais. É o cotidiano se
insurgindo contra as limitações da pauta ambiental.
No senso comum, cotidiano é o que ocorre todos os dias, o
banal, o corriqueiro, o repetitivo. Mas nele também nasce a ruptura, a
possibilidade de transformação social. A tensão constante entre
repetição/transformação faz do cotidiano uma categoria de longa tradição em
diferentes correntes sociológicas. Em minha tese de doutorado, desenvolvo a
tradição marxista e mostro como o jornalismo de crítica do cotidiano elucida a
experiência vivida no espaço, sendo este o caminho para ampliar a cobertura dos
temas da chamada questão (e sua pauta) ambiental (ABREU, 2019).
6-Jornalismo ambiental: totalizar os resíduos
Para dar um rumo apropriado ao que foi
desenvolvido até agora, a síntese é esta: o papel do jornalismo ambiental é
totalizar os resíduos, concepção que trago da obra de H, Lefebvre. Ele dá o
nome de poiésis a toda a atividade humana que “(...) se apropria da ‘natureza’ (physis)
em torno do ser humano e nele (sua
própria natureza: sentidos,
sensibilidade e sensorialidade, necessidades e desejos, etc.)” (LEFEBVRE, 1967,
p. 64, com grifos no original). É, portanto, criadora de obras: “Compreende
fundações, decisões de consequências ilimitadas, embora às vezes despercebidas
durante longos períodos” (LEFEBVRE, 1967, p. 64-5).
Para Lefebvre, a poiésis parte do
residual, do que ele denomina resíduo.
O autor afirma que cada atividade que se
autonomiza tende a constituir-se em sistema, em “mundo”, o qual acaba por
expulsar, indicar, o resíduo. O
resíduo é o que escapa, o que resiste, e de onde pode partir uma resistência
efetiva e prática (LEFEBVRE, 1967, p. 68 e 373). A religião, como poder,
constitui como resíduo a vitalidade (natural, carnal); a filosofia constitui
como resíduo o não-filosófico (o cotidiano, o lúdico). E assim continua: o
político, a vida privada; a burocracia, o individual; a significação (signo,
significante, significado), o insignificante. Para Lefebvre, é preciso “(...)
detectar os resíduos – neles apostar – mostrar neles a preciosa essência –
reuni-los – organizar suas revoltas e totalizá-los. Cada resíduo é um
irredutível a apreender novamente” (LEFEBVRE, 1967, p. 375-6).
À poiésis cabe então reunir os resíduos depositados pelos
sistemas que tentam acuá-los e exterminá-los: “Promover um resíduo, mostrar sua
essência (e seu caráter essencial), contra o poder que o oprime e o patenteia
tentando oprimi-lo, é uma revolta. Reunir os resíduos é um pensamento
revolucionário, um pensamento-ação” (LEFEBVRE, 1967, p. 376). Apostar neles
“(...) por um ato poiético inaugural,
reuni-los em seguida na práxis, erguê-los contra os sistemas e as formas
adquiridas, tirar deles novas formas, é o grande desafio” (LEFEBVRE, 1967, p.
378). Essa aposta comporta, diz o autor, a ideia de que nada é eterno nem
completamente durável:
Não apenas os resíduos são o mais precioso,
mas roem, destroem por dentro, fazem explodir os sistemas que querem
absorvê-los. Nesse sentido, a poiésis,
que deles se apodera, deve revelar-se criadora de objetos, de atos e, mais
geralmente, de situações (LEFEBVRE, 1967, p. 377). [Com grifo no original]
Uma revolução, dizia Lefebvre, para
realizar todo seu potencial, precisa gerar efeitos
na vida cotidiana, na linguagem e no espaço. Para isso, ele reclamava uma
invenção, uma poiésis, uma fala
criadora, que limitasse as “pretensões ilimitadas da mercadoria” e do seu mundo
(o dinheiro) e também não as substituísse “(...) por sujeições ‘superiores’ e
pelos valores da moral e da política” (LEFEBVRE, 1966, p. 337).
O jornalismo que se propõe a fazer a cobertura crítica da
relação sociedade-natureza deve estar então a serviço do conjunto de resíduos,
tomados como insignificantes pela filosofia, como assinala Lefebvre, como
conjunto do pseudo-nada, do Não-Valor, daquilo que não tem mais valor: “(...) o
quotidiano, a palavra incerta, a situação equívoca, a ambiguidade” (LEFEBVRE,
1967, p. 377).
Há, na vida cotidiana, um
conjunto de resíduos continuamente acossados pelos sistemas de poder por neles
germinarem alternativas que confrontam esses sistemas. Na sociedade atual, o
cotidiano é cuidadosamente programado e assim se mantém por coações e opressões
de todo o tipo, e as insurgências, o não programado, o impossível de controlar,
são duramente combatidos. Nessa perspectiva, reunir os resíduos e neles apostar
é um pensamento revolucionário, um pensamento-ação, como diz Lefebvre, e nisso
o jornalismo tem um papel fundamental.
O jornalismo ambiental precisa estar a serviço da
elevação da consciência, ser “uma forma de fustigar a brasa insurrecional”,
como afirma Barreto ao se referir aos esforços necessários por parte dos
ecossocialistas, que devem investir em formação, denúncia e agitação,
radicalizando as pessoas em luta: “Fazê-lo de maneira intencional e metódica,
não de maneira entregue ao acaso ou à esperança de uma elevação geral
espontânea de consciência da classe”. A formulação é perfeita também para
o jornalismo que se põe a serviço da emancipação humana.
Referências
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