quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Política, jornalismo e olhos de libélula

 


Por Míriam Santini de Abreu

Há poucos dias, caminhando nas proximidades da Câmara de Vereadores de Florianópolis, ouvi uma conversa. Um rapaz perguntava a uma moça sobre um vereador:

– Mas ele é de que bairro?

Isso de vereador “de bairro” deve ser herança das Intendências. E quem acompanha a Câmara de Florianópolis nota que a política ali se move pelo bairro. Não é por acaso o desconhecimento, desinteresse, estupidez e má-fé da maioria dos legisladores pelos grandes temas da cidade. Só tratam da vida do bairro, onde muitas vezes reina a troca de favores por votos. Vereador “da cidade” são poucos, aqueles de olhos de libélula para ver a cidade de cabo a rabo.

Daí nasce a reflexão para hoje: falar de “meio ambiente”, “desenvolvimento sustentável” e “justiça climática” agora é moda em campanhas eleitorais da esquerda à direita. É “politicamente correto” incluir o tema nas propostas para o Executivo e o Legislativo. Mas há que recordar uma reflexão do geógrafo Milton Santos: o discurso sobre a coisa, no nosso tempo, tomou o lugar da coisa. Nas redes sociais é pior ainda.

Então o caminho para ver o que está atrás do discurso é a práxis. Ação na vida cotidiana orientada por conhecimento. Um critério: onde estavam e como se movimentaram os corpos desses discursos nas grandes lutas da cidade para defendê-la dos vendilhões a serviço do lucro de poucos?

Algumas grandes lutas: 1) o Levante do TAC (Teatro Álvaro de Carvalho), em 2010, contra a proposta de revisão do Plano Diretor do então prefeito Dário Berger; 2) a mobilização popular contra a instalação do Estaleiro da OSX em Biguaçu; 3) a irrupção da Ocupação Amarildo de Souza no Norte da Ilha, gerando inédita criminalização jurídico-midiática; 4) a mobilização popular em 2013 e 2014 mais uma vez em protesto contra as mudanças no Plano Diretor na gestão do então prefeito César Souza Júnior, sob forte repressão policial; 5) a luta pela Ponta do Coral 100% Pública e contra os emissários submarinos e seus impactos ambientais, assim como as grandes marinas, os “engordamentos” de praias e a despoluição de baías, que consumiu milhões para nada; 6) a defesa das lagoas, rios, águas marinhas, manguezais, restingas, áreas de preservação permanente e unidades de conservação; 7) a mobilização popular a partir de 2020 mais uma vez em protesto contra as mudanças no Plano Diretor na gestão do então prefeito Gean Loureiro e depois de seu vice e hoje prefeito, Topázio Neto, mudança esta sacramentada em melancólica votação na Câmara de Vereadores em 2023.

A falta de memória beneficia quem some com o corpo e aparece com o discurso. O jornalismo local, a serviço e a soldo dos interesses da atual gestão da prefeitura, joga a pá de cal na possibilidade de confrontar as candidaturas. Perguntas que não perguntam, respostas que nada dizem, encenação de jornalismo e de política.

Uma aula sobre como fazer? A edição de 26/27 de abril de 1986 no Jornal de Santa Catarina, o velho Santa impresso, que encontrei graças à jornalista Roseméri Laurindo, que entrevistamos para o projeto Repórteres SC, da equipe da Pobres & Nojentas. Ela guardou, entre outras, uma página dupla do standard, sem anúncio, com o seguinte título e linha de apoio: “OCUPAÇÃO DO SOLO: em debate as garantias de preservação da Ilha”. Ali está a síntese de uma mesa-redonda organizada pelo Santa, de duas horas e 30 minutos, para debater a regulamentação do chamado Plano Diretor dos Balneários e o processo de urbanização da capital. Foram nove convidados de diferentes campos de atuação e pontos de vista.

Em apenas duas páginas, um instigante retrato da cidade naquele período, ainda mais hoje, quando a prefeitura e o empresariado são as fontes predominantes a desfilar no jornalismo local revirando a cidade, plantando cimento e falando em “inclusão” e “desenvolvimento sustentável”. Destaque para as perguntas da jornalista: inteligentes, provocativas, capazes de instigar os entrevistados a efetivamente se expor, olho no olho, na mesa do jornal e na edição depois impressa. Roseméri e o Santa fizeram outras dessas, uma delas sobre a falta de moradia em Santa Catarina nos anos 1980 e com a qual estou escrevendo um artigo. Bah, Rose!

A eleição se alimenta da desconexão da política com a vida cotidiana, real, concreta. Desconexão que também é a marca do que se pratica como jornalismo hoje. Há que perseguir o Jornalismo. O Jornalismo que dá a volta nas coisas para nelas flagrar o mal dito no discurso. O escritor José Saramago ensina isso no documentário “Janela da Alma”. Ele fala sobre a coroa mui apreciada do Camarote Real no Teatro de Lisboa. De longe e de frente, enorme, dourada, magnífica. Mas, vista de trás, oca, repleta de pó e teias de aranha. Logo ele aprendeu uma lição da qual nunca se esqueceu: “Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta. Dar-lhes a volta toda."

Sim! Político “da cidade” tem que ter olhos de libélula. E jornalista também!



sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Artigo analisa as mazelas da modernização catarinense a partir do trabalho da jornalista Elaine Borges


Mais um belo achado adicionado à lista de pesquisas sobre jornalismo ambiental em Santa Catarina. É o artigo de Isadora Muniz Vieira intitulado “A outra face da modernização de Santa Catarina: mazelas de catarinenses retratadas por Elaine Borges em O Estado (1972)”. Mesmo que a designação jornalismo ambiental tenha surgido depois dos trabalhos mencionados, vale registrar que Elaine Borges foi pioneira no olhar cuidadoso para as mazelas na relação entre sociedade e natureza em Santa Catarina.

O artigo, segundo o Resumo, "objetiva analisar representações de Santa Catarina durante as transformações do jornalismo brasileiro, em nível nacional e local, a partir das matérias da jornalista gaúcha Elaine Borges para o jornal O Estado. Através de sua trajetória profissional, a jornalista criou narrativas sobre Santa Catarina em diferentes periódicos de circulação regional e nacional num contexto que o estado se modernizava e investia em turismo a partir de iniciativas públicas e privadas. No O Estado, diferentemente de outros periódicos, a jornalista abordou o momento de modernização catarinense por outro viés, dando maior atenção aos sujeitos pertencentes às classes sociais historicamente marginalizadas que continuaram excluídas durante o processo. Assim, a intenção é analisar as matérias publicadas pela jornalista no jornal de junho a outubro de 1972, percebendo de que forma a modernização do estado e os seus habitantes foram por ela representados".

Pesquisando como O Estado havia coberto, em junho de 1972, a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente, ou Conferência de Estocolmo (saiu uma notícia breve), encontrei um texto de Elaine Borges, com cinco fotografias de Orestes Araújo, publicado em 10 de junho daquele ano, merecedor de chamada e foto na capa, intitulado “As famílias que vivem do lixo”. São nove parágrafos impecáveis. Lidos mais de 50 depois, têm a qualidade do eterno acontecer dos grandes textos jornalísticos. 

A trajetória de Elaine Borges também está contada na dissertação de mestrado de Isadora Muniz Vieira. Ali descobri que aquele foi primeiro texto da jornalista para O Estado. Ainda em 1972, para o mesmo jornal, ela fez reportagens, como enviada especial, sobre a viagem dos primeiros colonos de Santa Catarina para a Amazônia. Esse material é analisado no artigo de Isadora acima mencionado. Precioso! 

Referências

VIEIRA, I. M. A Ilha da Magia de Elaine Borges: um passeio pelo passado de Florianópolis através da trajetória da jornalista (1972 - 1999). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, 2019.

VIEIRA, I. M. A outra face da modernização de Santa Catarina: mazelas de catarinenses retratadas por Elaine Borges em O Estado (1972). Boletim Historiar, [S. l.], v. 6, n. 3, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/historiar/article/view/12651. Acesso em: 9 ago. 2024.


Política, jornalismo e olhos de libélula

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